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O valor da capa


Da materialidade do couro às imagens geradas por inteligência artificial, as capas de livros deixaram de ser meras protetoras de páginas e transformaram as livrarias em  verdadeiras galerias de arte  onde se aprecia o trabalho de artistas do design e das artes plásticas.


Prêmio Jabuti elege a capa de  A Nossa Bíblia Sagrada como a melhor  de 2024

 

A própria pele humana foi usada em encadernações, hoje as técnicas que dão brilho e relevo fizeram com que as capas se destacassem dos livros,  ganhando vida própria. As melhores  são escolhidas anualmente por veículos como o jornal The New York Times ou a revista Print, especializada em artes gráficas.

“Quando analiso um livro como um todo, prefiro que o interior tenha respostas e que a capa levante questões,” disse Matt Dorfman, diretor de arte do The New York Times, em 2015, quando incluiu entre as 12 melhores do ano a capa de The Complete Stories, coletânea de Clarice Lispector editada nos EUA pelo escritor norte-americano Benjamin Moser.

Assinada pelo designer Paul Sahre, ela traz uma foto em preto e branco  do rosto da escritora, posicionado na horizontal, cortada por linhas vermelhas. Apenas a testa, os olhos e o nariz de Clarice aparecem. Não traz o  título ou autor, que  estão apenas na lombada do livro.

No Brasil, o Jabuti, um dos maiores prêmios  do mercado editorial  nacional, elege a melhor capa desde a terceira edição em 1960, quando houve uma premiação especial. ‘Na ocasião,” diz  Sevani Matos, presidente  da Câmara Brasileira do Livro, “o prêmio foi  concedido em reconhecimento ao trabalho de Eugêniro Hirsch, responsável pelo conjunto de capas para a editora Civilização Brasileira.”

Em 2024 A Nossa Bíblia Sagrada, da designer Julia Máximo, levou o Jabuti de melhor capa. Com acabamento premium, em relevo, ela é inspirada na história de Jesus, e traz a infância, vivência  pública e a Paixão de Cristo em três arcos.

Premiado com dois Jabutis de melhor capa, Alexandre Martins Fontes, está  à frente da editora e livraria homônimas, desde o falecimento do pai Waldir, em 2000. No ramo do livro, ele começou  como  designer de capas no início dos anos 80: “Brinco que sou um amador no mercado editorial e profissional das artes visuais”.

A leva de talentos surgidos na antológica exposição Como vai você Geração 80 no Parque Lage, Rio de Janeiro, em 1984,  marcou, segundo Alexandre, os novos artistas num momento em que a indústria editorial vivia uma euforia: “ Mais do que nunca, o livro como objeto e, particularmente, as capas dos livros, passaram a ser muito valorizadas”.

“Sempre admirei o trabalho dos meus queridos amigos, os artistas visuais Rodrigo Andrade e Carlito Carvalhosa”, comenta ele, “ Ainda lembro do meu entusiasmo ao ver as capas que fizeram, nos anos 90, para uma nova edição da obra do inigualável Guimarães Rosa”.

Segundo o editor, livros de ficção permitem voos mais altos e arrojados na criação de capas: “Não por acaso, as mais admiradas e premiadas são aquelas das editoras que se dedicam à literatura”.

“ O ditado ‘Não julgue um livro pela capa’ não pode estar mais defasado”,  afirma a editora Rafaella Machado, da Record.” A capa precisa ser uma embalagem para o produto, chamativa, que possa competir com outras formas de entretenimento. Uma capa bonita não cumpre sua função se não gerar impacto em vídeo, em plataformas como o Instagram ou  o TikTok.”

O consumo de romance e fantasia pela Geração Z  no formato digital tem movimentado a venda de livros. Segundo Rafaella, após a leitura do e-book  esse público costuma adquirir o exemplar físico como um troféu para exibir  na estante.Um colecionismo que se mantêm vivo enquanto discos, selos e moedas foram afetados pelas novas tecnologias.

“ Mas é preciso que  seja uma edição especial”, diz ela,” com vários extras, como capa dura, pintura trilateral, efeitos que brilham no escuro, stick metalizado.” Rafaella acredita  que, na medida em que essa geração fique mais velha, a tendência de edições especiais irá migrar para outros segmentos do mercado como a literatura.

“Temos uma equipe incrível com o Leonardo Iaccarino como diretor de arte, muito premiado. Trabalhamos com ilustradores  brasileiros free-lancers , quando a linguagem é  parecida com o texto a ser editado, e compramos uma  capa estrangeira quando ela é muito icônica”, diz Rafaella.

Uma tendência na Record é um livro ter  várias capas para cercar o mercado por vários lados nesse momento em que há redução no número de leitores.Capas icônicas são mantidas em circulação em respeito à memória afetiva,  mas ao mesmo tempo, outras podem ser criadas para o mesmo livro em edições especiais “.

No livro A capa do livro brasileiro, de 2018, o bibliófilo Ubiratan Machado, mostra a evolução do design gráfico no país entre 1820 e 1950, contextualizada de acordo com movimentos literários como Romantismo, Naturalismo e Simbolismo, movimentos artísticos como Art Decó, Modernismo, Concretismo e o papel das editoras.

Entre os grandes artistas plásticos que se voltaram para a criação de capas o livro mostra trabalhos de Carybé, Di Cavalcanti, Amilcar de Castro e cita Monteiro Lobato como divisor de águas no mercado editorial  brasileiro também no segmento capas.

A livreira Margarete Cardoso, maior especialista em livros raros e antigos do Brasil, que esteve durante 50 anos na Livraria Kosmos, no Centro, também afirma que se pode julgar o livro pela capa já que é ela que irá determinar o valor de algumas obras raras.

“Livros com uma bela capa ou que mostram paisagens da época têm grande valor, sem muita importância para o texto” diz ela. “Um poeta do século XX, sem grande talento literário pode ter seu livro valorizado apenas por ter sido amigo do Portinari, que criou a capa.”

Em abril, uma obra encapado com pele humana, de 1682, foi colocado à venda na Feira Internacional de Livros Antigos de Nova York, pelo equivalente a R$ 230 mil. O texto,  de uma peça intitulada Le Baron, foi encadernado por um estudante de medicina com a pele de uma atriz que atuou no espetáculo e que, ao morrer logo após, seria enterrada em vala comum.

Em março, a Universidade de Harvard, nos EUA,  anunciou que removeu a encadernação em pele humana de uma obra encontrada no seu acervo. Publicado em 1880,  Os destinos da alma, de Arsène Houssaye foi encadernado  pelo bibliófilo e médico francês Ludovic Boulan com a pele de uma paciente. Ele deixou uma nota no livro: ”um livro sobre a alma humana merecia ter uma cobertura humana.”

A bibliopegia antropodérmica, nome dado ao uso de pele humana na encadernação de livros, tem registros a partir do século XVI. A livreira Margarete Cardoso se posiciona contra a retirada da capa do exemplar de Harvard: “Não teria na minha casa, mas deveria ser preservada para mostrar do que o ser humano é capaz.”

O uso do couro de outros animais  na encadernação permanece como prova de bom gosto, principalmente o de boi, porco, cabra  e carneiro, “o mais alto luxo”, segundo Luis Marcelo Carvalho, do ramo da encadernação.

“O público desses serviços quer mostrar uma bela biblioteca  ao fundo; escritores, jornalistas, advogados , criadores de conteúdo para a internet e pessoas que fazem reuniões on-line”, diz ele.” Recentemente restaurei e encadernei uma biblioteca com cerca de 5 mil livros.”

Marcelo aprendeu o ofício com o pai Luis Carlos Carvalho que há 50 anos tem uma oficina no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, recebe clientes de várias partes do Brasil e diz que a demanda continua boa.

“A encadernação, além de dar uma aspecto requintado à biblioteca,  ajuda a eliminar fungos, traças, cupins e dar mais resistência  através da costura”, diz ele. “Hoje a maior parte dos livros são colados. Há casos até de Bíblias que não são costuradas. Inconcebível.”

Maior best-seller no mundo, a Bíblia é o que gera mais serviços: ”A maioria das Bíblias tem a capa em material sintético, e as pessoas querem preservá-las  com couro, ou porque não gostam das novas traduções, ou  não querem perder anotações e marcações no volume que têm.”

Enquanto a tradição perdura , as novas tecnologias na criação de capas causam polêmica. Em 2024 uma reedição do clássico  Frankenstein, de Mary Shelley,  foi desclassificada entre os finalistas  do Prêmio Jabuti por uso de inteligência artificial na imagem da capa.

“A questão do uso de inteligência artificial ainda não estava prevista no regulamento do Prêmio Jabuti,” explica Sevani Matos, da Câmara Brasileira do Livro. “Diante disso, a curadoria decidiu pela desclassificação. Atualmente, está estabelecido que as obras não podem utilizar inteligência artificial, exceto quando aplicada para fins de citação, estudo, crítica ou debate.”

“Na verdade,  a inteligência artificial é mais um produto da criatividade, da engenhosidade e do conhecimento humano,” afirma Alexandre Martins Fontes,  que preside Associação Nacional de Livrarias. “Há séculos, usamos a tecnologia para criar obras brilhantes e admiráveis. Sempre foi  assim,  e vai continur sendo.”

 

Kleber Oliveira

para AELRJ

17/04/2025