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A sabedoria do sebo


Maior sebo da cidade com três lojas no Centro, a Academia do Saber mantém a tradição do comércio de livros usados na região, e prepara uma expansão após a entrada da terceira geração da família no negócio.

A história, segundo Ricardo Pereira, filho mais velho de Mario Leonardo Pereira, começou quando seu pai, ex- vendedor de porta a porta da Enciclopedia Barsa ,  fundou o seu primeiro sebo na rua Regente Feijó, na região de comércio popular do Centro conhecida como SAARA.

Aos 17 anos, Ricardo foi matriculado em uma escola próxima para ajudar na livraria depois da aula. Mesmo formado em Turismo e Administração continuou no sebo e foi responsável pela expansão do negócio na região.

O irmão do meio, Renato, entrou para o ramo depois do pai sofrer um AVC e o caçula Rodrigo, para quem o pai tinha outros planos, trabalhou em algumas empresas antes de também aderir ao mercado livreiro.

Hoje cada um dos irmãos gerencia, com certa independência, uma das três lojas da Academia do Saber que, juntas, empregam 15 funcionários. As três estão na região da SAARA e têm especificidades no acervo, sendo a de Ricardo, segundo ele, o sebo com maior número de livros espíritas do Rio.

Em 2006 Ricardo inaugurou uma quarta loja na Travessa do Ouvidor, região nobre do Centro, que durou 4 anos. Agora, pretende mais uma vez, abrir uma quarta unidade por causa da entrada do seu filho Rian no mercado, que atualmente trabalha com ele na loja da Avenida Passos.

Segundo Ricardo, todas inaugurações de lojas da Academia do Saber aconteceram em tempos de crise, épocas mais favoráveis à venda de livros usados e sempre no Centro, que, para ele, é a região da cidade mais propícia ao seu tipo de negócio.

Em 2003 havia 60 sebos no Rio, sendo 36 no Centro, segundo o Guia dos Sebos da Cidade do Rio de Janeiro, de Antonio Carlos Secchin. Em 2010, segundo o livro História das Livrarias Cariocas, de Ubiratan Barbosa, o número de sebos no Rio caiu para 45 sendo 25 no Centro.

Já o Guia de Livrarias da Cidade do Rio de Janeiro, editado pela AEL, contabilizou 26 sebos no Rio em 2017 sendo 16 no Centro. A região da Praça Tiradentes, onde já houve cerca de 20 casas do gênero conta hoje com as lojas da Academia do Saber, da Letra Viva , O Acadêmico do Rio e 2 Silvério.

 

 

A curadoria de um sebo é mais fácil que a de uma loja de novos?

É mais difícil. Para conseguir o livro novo basta ter o catálogo e pedir às editoras. Já o livreiro de usados tem de comprar uma biblioteca com vários assuntos. Isso está cada vez mais difícil. Uma biblioteca eclética tem uns 3 mil livros, mas hoje as pessoas chamam para vender 150, 200 livros com apenas 3 ou 4 assuntos dominantes. Esta semana comprei um lote excelente de um economista, que dá aula em uma universidade e trabalha no Tribunal de Contas. Ele tinha todos os livros de referência da área. Então, hoje a melhor seção da minha loja é a de economia. Mas os melhores livros vão saindo e se não entrarem outros iguais ela fica fraca. Por isso o sebo é diferente: na livraria vendeu o livro, liga para a editora e repõe. É mais fácil montar o acervo com o catálogo das editoras. Se for a sua casa, 30% dos livros que comprar terão giro rápido, outros 30% venderão devagar e os outros 40% vou rezar para saírem. Para ter um bom acervo num sebo é preciso investir muito para filtrar o essencial.

A proximidade da loja da Federação Espírita influencia no acervo sobre espiritismo?

A livraria da Federação Espírita Brasileira foi fundada em 1897. É bem tradicional e as pessoas acham que lá encontrarão todo tipo de livro espírita. Mas eles só trabalham com livros que editam ou de uma ou outra editora. Hoje estamos de frente a eles, mas no começo ficávamos ao lado e as pessoas saìam dalí e entravam na minha loja à procura do livro que não havia lá. Percebi que era uma forma de ganhar dinheiro. Comecei a comprar livros espíritas novos para atender a esse público. Depois, isso chama o livro usado; a pessoa compra o novo e vende o usado. Hoje temos oito estantes de livros espíritas novos e mais sete estantes de espíritas usados.

Você também trabalha com livros novos em outras áreas?

Não como tenho na seção de livros espíritas. Mas quando um livro estoura e é muito procurado, compro na editora para atender ao público. Muita gente vai ao sebo e acha que encontrará um livro usado daquele título que está fazendo sucesso. Mas não encontra porque as pessoas demoram alguns meses para se desfazerem dos livros. Então eu digo, não tenho usado, mas tenho o novo. Como ela não achou um usado, acaba levando o novo. São os segredos da profissão.  Mas saiu daquele momento, não peço mais à editora. Vendo o novo no preço da tabela. Mas 99% dos livros com que trabalho são usados.

Quem é o público da Academia do Saber?

Por estarmos no Centro e no nicho dos sebos, nosso público é bem variado. Tanto que a loja tem todos assuntos e mais gibis e revistas. No Centro há essa facilidade de se poder trabalhar bem com todas as áreas. Os sebos só se mantêm no Centro da cidade. Na Tijuca houve alguns que funcionaram dois, três anos e depois fecharam. O mesmo no Méier e em Madureira. A cultura do sebo é no Centro; aqui temos desde o homem culto até aquele que está começando, procurando a cultura.

Como analisa a diminuição de sebos na região da Praça Tiradentes?

De certa forma não é bom. Quando alguém precisa de material eletrônico vai à Rua República do Líbano, o nicho desses produtos no Rio. Quer alguma coisa de informática, vai ao Edifício Avenida Central. Quando queria um livro usado vinha à Praça Tiradentes, onde havia vários sebos mas hoje a pessoa diz: “Não vou porque tem  poucas lojas”. Isso não é bom para o comércio. O sebo sofreu muito nessa área por causa dos aluguéis. Muitos donos de sebo deixaram a loja física para vender pela internet. Não têm mais funcionários, não pagam IPTU. Mas de um ano para cá vejo que a situação melhorou. Vejo renovação no estoque dos meus colegas, em alguns mais rápida que em  outros. Está dando uma equilibrada.

A Academia do Saber vende pela internet?

Tentei botar uma página, mas como não lido bem com essa parte vi que seria mais simples e produtivo trabalhar com os portais de acesso. Hoje a Estante Virtual domina e há mais dois ou três como o Livronauta. Com a venda da Estante Virtual para a Cultura vamos aguardar a política dos novos gestores. A nossa venda lá não é o que eu esperava. Pelo volume de livros que coloquei deveria vender mais. Acredito que isso se deva em parte aos erros na implantação do portal que permitiu que qualquer um vendesse. Há várias categorias como livreiro, livreiro virtual, livreiro amigo, livreiro leitor com uma concorrência até desleal para o os sebos estabelecidos. Acho inclusive que a culpa pelo fechamento de um grande número de sebos físicos foi o comércio eletrônico. Nós ainda vendemos muito mais na loja física e o preço na Estante Virtual é o mesmo daqui.

Como foi a experiência da loja  na Travessa do Ouvidor?

Quando montei a loja em 2006 achei que, pela localização em uma área nobre do Centro, estaria fazendo o negócio da minha vida. Um espaço bonito em uma rua com vários restaurantes, bom trânsito de público. O problema é que a loja era em um sobrado. Tinha uma escada antiga de madeira, estreita, e houve muita dificuldade das pessoas subirem até a livraria. Uma vez uma senhora ficou gritando embaixo; pensei ter havido alguma coisa, um assalto. Quando fui à porta ela estava com uma lista de livros que queria que alguém pegasse por que não queria subir a escada. A loja era bonita, tinha dois andares, mandei um acervo bom de quase 20 mil livros e fiquei triste de não dar certo. O problema foi o acesso pela escada. Hoje sei que há 90% de chances de não abrir loja em sobrado.

E o interesse em uma loja no subsolo na galeria da Livraria Leonardo da Vinci?

Agora há um pool de livrarias naquela galeria. Além da Leonardo da Vinci, tem a Disal, Martins Fontes e a Berinjela. Quando há essa aglutinação com várias lojas do mesmo ramo você chama a atenção do público. Ele sabe que ali vai haver mais possibilidade de encontrar o que procura. É interessante pelo conglomerado que se formou. Andei negociando, mas o Rio ainda passa por um boom no preço dos aluguéis e o IPTU aqui é absurdo. Meu filho entrou no ramo, estou ensinando a ele como funciona e tem gostado. Penso em abrir uma nova loja mas tenho o pé no chão. Sei o que posso fazer, até onde posso ir. Quero abrir uma loja para atender as pessoas e ouvir dizerem “Isso aqui é um sebo!”. Agora no fim de ano, recebi turistas de Portugal que queriam conhecer a Academia do Saber. Isso me deixa orgulhoso. Conseguir ser falado em outro país.

Por que trocou o nome Leonardo Marios para Academia do Saber?

Leonardo Marios era o nome do meu pai invertido. Quando decidimos abrir mais uma loja falei que queria um nome forte. Como temos a Academia Brasileira de Letras pensei em Academia do Saber; o sebo é onde há todos os saberes, não existe uma especialidade. Depois vi que nas listas e catálogos de livrarias o nome Academia viria na frente por começar com a letra A. Mais um ponto positivo. Papai trabalhou nessa loja três ou quatro anos mas já estava na fase de só  fazer a social, conversar com o cliente, o que eu também gosto muito. Temos clientes que vêm aqui para conversar, tomar um café. É um comércio à moda antiga. Para mim ir ao bar do lado tomar um café é uma forma espairecer porque entro às 7h e saio às 18h.

A Academia do Saber já teve serviço de  café?

Comprei uma máquina de café expresso e fiz um cantinho onde também havia biscoitos e o café era vendido a dois reais. Havia umas poltronas no meio da loja, para o cliente sentar. Mas o volume de livros foi crescendo e fiquei sem espaço. Decidi que seria melhor tomar café no bar do lado. Também fiz alguns eventos, saraus, tardes de autógrafos, tardes de música. Mas os eventos começavam às 17h e não tinham hora de acabar. Geralmente eram as sextas e houve dia em que sai da loja 2h da manhã de sábado para voltar para abrir às 9h. Gostava dos eventos, mas cansa. Os funcionários também precisam descansar. Hoje se isso voltar a acontecer na Academia do Saber será por vontade do meu filho que está entrando com ideias novas.

Você, que também começou a trabalhar cedo, como se desenvolveu enquanto  leitor?

Digo que leio pouco porque estou cerca de 12 horas na livraria. Leio 12, 15 livros por ano. Minha mulher lê uns 35, me dá um banho. Leio coisas que me interessam de modo cíclico. Houve época em que li muita religião e esoterismo. Noutra, li sobre a II Guerra Mundial, seus personagens, Hitler, Patton. Quando tive um sítio, li sobre culturas e criação durante uns três ou quatro anos. Nas bibliotecas que compro também vejo esse caráter cíclico dos leitores. Vamos na casa de uma pessoa e  há várias edições da década de 80 e constato: ” Nessa época ela gostava de ler livros religiosos”. Na década de 90 já estava lendo sobre finanças e investimentos; ganhou dinheiro e deixou a religião para comprar ações. Analisamos o perfil da pessoa pela biblioteca que tem. Quase toda vez que compro uma biblioteca acabo fazendo um estudo dos momentos que a pessoa passou na vida.

Em que medida a formação como administrador o ajuda como livreiro?

Ajuda porque você passa a ter uma visão contábil e fiscal da empresa. Tenho meu contador, uma pessoa super competente, de extrema confiança, mas sempre olho tudo que ele faz. Se diz “vai ter um tributo novo” posso contra argumentar; “sim, mas isso daqui a vinte anos”. O conhecimento sobre administração dá essa possibilidade de não se deixar levar e interpor argumentos. Também há noções sobre giro de estoque: “Esse livro está parado, vamos tirar”. Mas acho que minha experiência como livreiro pesou mais no sucesso da Academia do Saber. Hoje tenho prazer em ver uma estante cheia, com obras boas, conseguir atender ao cliente; “Você tem isso?”, “ Tenho”, “ Tem isso?”, “Tenho’.

Como é a relação profissional com os irmãos nas outras lojas?

Nós nos reunimos praticamente todos os dias, porque moramos próximo no Grajaú. Ainda temos nossa mãe e todos os dias passamos os três na casa dela. Deixamos de tomar café da manhã em nossas casas para tomar na casa dela. Mas cada um administra a loja em que está. Há uma autonomia. Nos comunicamos para falar sobre compra de bibliotecas; quando um não tem interesse passa para o outro que está carente de livros em determinada área. Fazemos esse intercâmbio para mantermos as lojas com um bom acervo.

Você mesmo negocia as obras  raras que encontra nas bibliotecas que compra?

Hoje não gosto de vender obras raras em leilão. Às vezes chegam as minhas mãos obras esgotadas, autografadas por autores que já morreram e gosto de vendê-las para o meu cliente. O comprador de leilão muitas vezes é de São Paulo e então não vou ter possibilidade de ter esse livro outra vez. Vendemos as obras raras aqui mesmo para privilegiar nosso cliente, que está aqui o ano todo. Me dizem que posso ganhar mais dinheiro no leilão, mas penso que vou ganhar mais se esse livro um dia retornar para mim. Uma das coisas que mais me dá prazer é quando compro um livro e vejo a marcação com a letra do meu pai no livro. Fico arrepiado, quase choro; a pessoa comprou com o meu pai e estou comprando dela.

 

7/03/2018